Viver é melhor que sonhar?

Uma frase habitualmente dita por muitas pessoas que se deparam com um problema é “a ignorância é uma benção”. Sempre achei esta frase muito contraditória, pois normalmente é dita por pessoas que, em algum momento, desejaram o conhecimento. Observo que a “pérola” em questão é um recurso cunhado por aqueles que se decepcionaram com suas descobertas, ou seja, quando a sua pesquisa se finda com um objetivo diferente daquele desejado.
Outro ponto importante desta afirmação é que ela pouco diz sobre o nosso real comportamento cotidiano. Pelo menos não em uma parte dele. Proponho aqui um exemplo: uma jovem apaixonada desconfia que seu noivo está lhe traindo. Os indícios são convincentes, para ela, pois o rapaz sai com frequência para atender o telefone e sempre está cochichando. Não suportando a dúvida que lhe corrói, a jovem resolve fuçar no celular de seu futuro esposo: situação 1: descobre que o rapaz está organizando uma festa surpresa para ela. Situação 2: realmente está traindo-a.
A situação 1 gera na jovem um alívio reconfortante por saber que seu futuro marido é atencioso em organizar uma homenagem para ela. Na situação 2, no caso da traição confirmada, a jovem fica amargurada e deseja que aquilo não fosse verdade. Neste último caso, o que a fez desejar a ignorância não foi a verdade em si, mas uma verdade insustentável para sua fantasia.
Boa parte do nosso sofrimento psíquico se dá através de uma resistência exagerada diante de uma realidade inconcebível. Nossos sintomas são a manifestação, ou a voz, dos nossos desejos reprimidos que descansam em nosso inconsciente. Desejar a ignorância é uma forma de proteção diante do sofrimento que a verdade (ruim) pode nos proporcionar. Não à toa, Freud chama tais estratégias como mecanismos de defesa do nosso Ego, e este é conhecido como negação.
É importante salientar que tais mecanismos exercem função importante em nossa mente, nos preservando e mantendo um razoável equilíbrio de nossas funções emocionais. No entanto, sua função não é eterna e/ou indestrutível. Em determinadas situações, viver sob esta defesa intransponível nos causa danos mais dolorosos que a própria verdade inicial que tanto tentamos negar.
Nossa civilização se desenvolveu através de inúmeras concessões feitas por nós, enquanto indivíduos. Boa parte destas concessões vem deixando de fazer sentido ao longo dos anos, uma vez que algumas crenças e preconceitos se diluem. Talvez seja importante olharmos para um estigma que ainda se sustenta e que vem ganhando espaço na modernidade, o de que o conhecimento é ruim. Seja na vida cotidiana, nos estudos ou no consultório, o que tememos não é conhecer, mas sim conhecer (ou reconhecer) aquilo que nos incomoda. Neste sentido, vale refletirmos sobre como nossa formação privilegia os ideais e despreza a vida real. Aqui, deixo a dica de Belchior: “viver é melhor que sonhar”.
Tiago Pontes é psicólogo e atende em consultório particular na região da Vila Clementino, São Paulo, e em São Caetano do Sul. Gerencia a página suco de cerebelo que aborda temas como psicologia, psicanálise, filosofia, literatura, artes e comportamento.
Tiago Pontes
Psicólogo
CRP 06/123352
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