O marketing de engajamento e nosso sono profundo

Estamos constantemente mudando nossa opinião sobre as coisas. Sim, nossas crenças são tão impermanentes como as camadas de pele que se desprendem dos nossos corpos a cada minuto. Num constante processo de decomposição, morremos pouco a pouco nos pedaços de nós mesmos que deixamos por onde passamos. O que se sabe sobre a vida vai sendo colocado de lado, guardado na prateleira de coisas que já não servem mais.
É claro que, de tempos em tempos, descontentes com o futuro que a nós é apresentado, nos dirigimos ao almoxarifado da história e tentamos resgatar algo que já conhecemos para nos salvar. A nostalgia se apresenta como solução para nossa covardia em enfrentar um presente desagradável – vide os saudosistas da ditadura que acham que seríamos mais felizes se não houvesse democracia. No entanto, há algo que insiste em não ficar obsoleto e que em nenhum momento de nossa história foi colocado no armário de coisas ultrapassadas: o dinheiro.
Apoiados no anseio de potencializar o acúmulo do vil metal, os que dele são dependentes inventaram a publicidade, uma “ciência” que transformou, através da alquimia hipnótica do convencimento, o roubo em sedução. É claro que o que chamo de publicidade em nada tem a ver com o modelo tradicional de exposição de um produto. Me refiro ao que crescemos assistindo na televisão: pequenos filmes com recursos e efeitos dignos de Hollywood, apenas para nos convencer que precisamos da tesoura do Mickey Mouse, afinal: “eu tenho, você não tem”.
Neste modelo, a apropriação da subjetividade do espectador é o cerne da campanha: alguém quer vender determinada coisa e usa a publicidade para que este objeto seja tão atrativo aos olhos do candidato a comprador que este último se vê patologicamente dependente de um produto que, em outras condições, seria totalmente dispensável para sua vida. Através da publicidade, acreditamos que precisamos daquilo que nos oferecem assim como precisamos do ar para respirar. Os comerciais transformam o fútil em útil, produzindo no espectador um apetite que não é dele. É, em última análise, uma apropriação do desejo alheio para benefício próprio.
Ao longo de décadas, assistimos em comerciais representações do que deveríamos parecer e ser. Como se olhássemos para um espelho, nos víamos e se não fossemos parecidos com o que estava diante de nossos olhos, bastava a compra do produto apresentado para que nos tornássemos idênticos ao nosso “eu publicitário” ou “eu ideal”. Magicamente, passamos a desejar tudo o que nos era apresentado, uma vez que só assim “seríamos nós mesmos”. Tal ilusão vem colaborando para que características desprezíveis de nossa civilização sejam reforçadas e as mudanças, tão necessárias, fossem ficando em segundo plano.
O século vinte e um chegou e com ele trouxe a ruptura de tudo o que entendíamos sobre nossa sociedade. Uma incontrolável – e necessária – correção da história passou a vigorar e muitos segmentos se alinharam ao novo paradigma. Junto com esta nova onda, a publicidade passou a direcionar sua “hipnose” aos novos grupos que surgiam como ocupantes dos lugares na mesa do banquete social. Estes que antes eram segregados pela publicidade, hoje são público alvo de campanhas direcionadas. Não como novos cidadãos e cidadãs, mas como novos consumidores, alvos da mesma sedução.
Não há interesse por parte das marcas em fazer com que a sociedade seja mais justa, afinal nunca fizeram nada para que o status quo de uma época (ontem, praticamente) fosse descontruído. O fazem hoje apenas para vender para os que acabam de sentar à mesa. Estes são apenas novos consumidores recém descobertos pelos empresários.
Na modernidade, novos terrenos foram explorados e a “ética publicitária” foi introjetada por nós mesmos. Com as redes sociais, passamos de consumidores para um híbrido de produtores/produtos. Antes, numa posição passiva e ruminadora, tínhamos apenas o papel de deglutir aquilo que nos era empurrado goela abaixo. Nesta nova perspectiva de criação de conteúdo, tecemos uma relação de igualdade com o que antes consumíamos, passando de homens e mulheres para produtos na prateleira dos novos mercados. Não há movimento que seja feito nas redes sociais que não passe pelo nosso sensor publicitário. O que dita as regras do marketing de engajamento é quão poderoso nosso post será e este poder está intimamente ligado ao gosto dos seguidores/consumidores.
Uma vez atravessados por este modelo da publicidade que, por sua vez, influenciou a vida moderna nas redes, acreditamos que o controle de nossas ações nos pertence e nosso posicionamento no mundo é absolutamente autônomo. Antes éramos influenciados pela sedução que nos foi imposta pelos comerciais, agora além de continuarmos sendo seduzidos, seduzimos os que nos seguem nas redes, tornando qualquer manifestação em uma tentativa de agradar a audiência e de “nos vender”.
Creio que o chamado “cancelamento” seja a maior prova disso. Qualquer deslize pode fazer com que um influenciador digital deixe de ser uma marca a ser consumida. A ilusão de que estamos tornando o mundo melhor com estas retaliações só colabora para que tenhamos produtores de conteúdo mais instrumentalizados para nos seduzir. Oferecemos feedbacks instantâneos para que seus produtos sejam vendidos com mais assertividade, como é explicado no documentário da Netflix, O dilema das redes (2020). Embora acreditemos que estejamos “cancelando” alguém que merece, estamos, na verdade, tornando nossa alienação ainda mais hipnótica.
Assim como ocorre numa psicoterapia, não nos tornamos mais saudáveis ao atacarmos o sintoma de nosso sofrimento, mas sim quando reconhecemos a causa de nossos problemas. Em última análise, precisamos reconhecer que dormimos um profundo sono, imposto pela hipnose a qual fomos submetidos, e decidir se queremos ou não continuar fazendo parte deste tipo de relação.
Tiago Pontes é psicólogo e atende em consultório particular na região da Vila Clementino, São Paulo, e em São Caetano do Sul. Gerencia a página suco de cerebelo que aborda temas como psicologia, psicanálise, filosofia, literatura, artes e comportamento.
Tiago Pontes
Psicólogo
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