Vai passar?

Seres de linguagem que somos, nos mantemos conectados através da palavra. Boa parte das expressões corriqueiras do dia-a-dia que costumo utilizar não passam de protocolo de comunicação: o “graças a deus!” não tem nenhum peso para mim, tendo em vista que não tenho nenhuma crença religiosa. Essas expressões fazem parte dos signos que nos mantêm conectados a um grupo. No meu caso, faço parte do grupo de pessoas que falam a língua portuguesa e que veem na expressão “graças a deus!” uma forma de manifestar alívio após um momento tenso que se desdobrou de forma positiva.
Esta necessidade de pertencimento não só nos aprisiona nos ditos populares, que estão presentes em nossa língua há tempos, como também nos arrebata para os mantras da moda, que surgem ciclicamente. Nesta pandemia há uma série deles, mas um em particular me causa arrepios: “vai passar” – deixarei de fora o “novo normal” (questão apenas de economia). Para alguém que enxerga o mundo com “óculos de psicoterapeuta”, é inevitável não olhar para isso como um desejo e não como uma certeza.
Não somos capazes de garantir que algo vai passar, mas podemos querer (desejar) que algo passe. Isso, em minha opinião, parece com o que a psicanálise chama de mecanismo defesa egoico. De forma simples: estamos assustados com o atual cenário de pandemia – sem falar nos desarranjos sociais e políticos potencializados com a COVID – e precisamos acreditar que em breve tudo isso passará. A defesa se faz presente na afirmação de que passará, deixando de lado a possibilidade (real) de não acontecer assim. Nos protegemos na fantasia, não nos fatos objetivos (há mais chances de passar, claro, a vacina está quase aí, mas não há garantias). Buscamos acolhida em nossos pequenos devaneios para suportarmos a vida: gostamos de vestir a “roupa” de normalidade, mas estamos mais próximos da loucura do que gostamos de admitir.
Antes que meu incômodo com este suposto otimismo possa sugerir um pessimismo crônico, me antecipo e digo sim, de certa forma o otimismo exagerado é parte de minha implicância com tal termo. Mas há, também, uma descrença em nossa capacidade de “sair dessa”, tendo em vista a forma como estamos enfrentando este problema, pois não parece que queiramos admitir de forma realista quão mal estamos. Não vai passar porque nunca passou e isto não mudará apenas por termos a fantasiosa crença de que passará ou porque estamos extremamente amedrontados.
Acreditamos que o mundo está em colapso devido ao problema em escala mundial que enfrentamos, mas na verdade ele nunca esteve bem. Nosso momento só serve para deixar as coisas ainda piores do que já estavam e, por mais que estes argumentos pareçam destruidores de esperança, sugiro que nos olhemos com coragem. Um exemplo: a solidariedade alardeada pelos veículos de comunicação, no início da pandemia, não passa de caridade publicitária. O único objetivo é o de tentar camuflar nossos problemas históricos, como o descaso dos nossos governantes ou os absurdos particulares da atual vida cotidiana, presentes em nossa incapacidade, por exemplo, de pôr um pedaço de pano no rosto evitando que outros se contaminem. Depois dos violinos nas sacadas e os aplausos para os profissionais da saúde, temos nos preocupado mais em dar uma “relaxada” sem máscara nos bares do que com a possibilidade real de contaminar outras pessoas – muitas vezes, aqueles que amamos. No começo estava fácil passarmos por novos seres humanos, mas, como diria Belchior, “ainda somos os mesmos(1)”.
Não, não vai passar e continuará não passando se continuarmos com uma postura fantasiosa e pouco adulta diante dos problemas. Reitero: não vejo problema algum na esperança, ao contrário. Sem ela não vamos a lugar algum. “O pensamento é o ensaio da ação”, disse Freud. O que devemos enxergar como patológico é nossa esquiva e negação, disfarçada de otimismo, algo que no fundo só nos afasta da real dimensão de nosso problema. O brasileiro é conhecido como cordial, alegre e otimista. Nossos números nos mostram o contrário. Somos um dos mais violentos, um dos que mais segregam e, agora, um dos piores números da pandemia – o segundo pior, mais precisamente.
Não há receitas prontas para mudarmos traços tão marcantes em nossa cultura e subjetividade. Como psicólogo, permito-me sugerir que tenhamos a mesma postura que um paciente tem ao procurar ajuda de um profissional. Reconhecer que as coisas não estão boas é o primeiro passo. Neste momento, sugiro que no lugar de acreditarmos que tudo vai passar, olhemos, sem truques, para nossa atual condição e, de novo com Belchior, entender que a verdadeira “(…)alucinação é suportar o dia-a-dia/E meu delírio/É a experiência/Com coisas reais”(2).
1. Trecho da canção “Como nossos pais”, Belchior
2. Trecho da canção “Alucinação”, Belchior
Tiago Pontes é psicólogo e atende em consultório particular na região da Vila Clementino, São Paulo, e em São Caetano do Sul. Gerencia a página suco de cerebelo que aborda temas como psicologia, psicanálise, filosofia, literatura, artes e comportamento.
Tiago Pontes
Psicólogo
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