Os vilões, ao longo da história, sempre nos despertaram o interesse. O que há de diferente no novo coringa é que Arthur Fleck é visto como uma vítima de uma sociedade doente. A admiração, que em outros casos é explicada nos atos audaciosos e destemidos dos vilões (o coringa de Heath Ledger, por exemplo, que provoca Batman com dilemas morais), dá lugar à identificação com um sujeito que leva uma vida marginalizada, construída pelas trágicas histórias de violência e negligência.
A controvérsia nesta solidariedade ao Coringa se dá pelo fato de sabermos exatamente que seus atos não são ações moralmente aceitáveis. A violência é o meio que lhe resta para comunicar os seus sentimentos ao mundo – sentimentos estes que foram, ao longo de toda uma vida, ignorados e ridicularizados. Nossa identificação se dá exatamente pelo fato de acompanharmos a sua transformação no decorrer do filme. Sua passagem de uma figura retraída e passiva para um “agente do caos” é presenciada pelos que assistem com um sentimento de comiseração e, concomitantemente, de ódio para com a sociedade que o excluiu.
A fotografia do filme colabora para que possamos acompanhar esta “gênese do mal” sem que fiquemos chocados. A escada que o leva para casa ocupa um lugar importante nesta construção de identificação. Vemos o cansado e derrotado Arthur Fleck subindo degrau por degrau, numa tentativa de recomeçar a sua rotina pela busca de um dia de paz. Esta cena é repetida algumas e representa a insistência, comum na vida de todos nós que resistimos ao assédio de uma vida injusta, violenta e, muitas vezes, banal – e, ainda assim, seguimos tentando nos “elevar” moralmente.
Sua “descida ao inferno” também tem como cenário a mesma escada. Após descobrir partes omitidas de seu passado, agora quem pisa nos degraus não é mais Arthur, mas sim o Coringa. Sua descida representa a entrega, o rompimento do seu vínculo com a sociedade, a rasura do contrato que insistia em manter com outros seres humanos. Neste momento, o que há é um sorriso, denunciando a perversão que será devolvida para Gotham City. Uma “descida” prazerosa ao inferno…
No cinema, não há pânico em quem assiste o “nascimento” de um vilão. Há uma espécie de torcida para que o Coringa faça o que todos aqueles que sofrem um dia tiveram vontade de fazer: devolver para a sociedade toda a dor que esta os causou. Não há mais um objeto específico a quem ele precisa direcionar sua vingança. Existe, apenas, um “não-eu” que precisa assistir (e sentir) toda a perversão originária desta relação desigual estabelecida ao longo dos anos.
Freud (1908) nos fala sobre as fantasias infantis revividas na vida adulta. Arthur, já com sua psicopatologia instituída e no auge de sua condição, não sente necessidade de obedecer a qualquer regra social, mas, ainda assim, anseia por aquilo que todos nós desejamos quando crianças e que é parte fundamental de nossa subjetividade: termos nossas ações reconhecidas. Se antes o que ele necessitava era ser reconhecido como um grande comediante, hoje quer ser visto como um produto de uma interação fracassada com o mundo (“não-eu”), um ser movido puramente por desejos sádicos – assim como entende que a sociedade o tratou ao longo de sua vida.
O Coringa se torna o que o seu próprio nome sugere: um Joker, um piadista. É interessante pensar nesta figura ao longo da história, pois a função deste personagem é exatamente a representação da ambiguidade humana. O “bobo da corte”, outro nome dado para o Joker, era o único que poderia afrontar a figura de um monarca: através de piadas, insultos e ofensas – e que, na maioria das vezes, representavam a realidade. No baralho, pode significar o tudo ou nada, dependendo dos acordos estabelecidos entre os jogadores. Em suma, o peso deste significante representa o lugar amoral que Arthur passa a ocupar na sociedade. Um bufão que debocha de qualquer convenção social e que se recusa a aceitar às regras do jogo. Ele se torna o dono do jogo. A fantasia infantil de controle e domínio se torna realidade.
O aspecto cômico do personagem coringa nos faz pensar em como sua infância está amarrada ao formato de sua estrutura psíquica. Freud (1908 – 1907) observa que para a criança a brincadeira é algo que se leva demasiadamente a sério. A brincadeira não é a antítese do real e o ato de brincar representa, para a criança, uma maneira de significar seus sentimentos, construindo (e desconstruindo) de tal maneira a diminuir suas tensões psíquicas. Algo que nós, enquanto adultos, acabamos por deixar de lado, devido aos apelos sociais que nos cobram certos padrões de comportamentos para os que são crescidos. Embora brinque, a criança sabe diferenciar seu mundo de brinquedo do mundo real: diferença entre o brincar e fantasiar. Freud também nos lembra que os escritores se assemelham com os pequenos nesta condição: criam fantasias e devaneios, mas enxergam a tênue linha que separa realidade da ilusão – diferentemente do que ocorre com quem sofre de alguns transtornos psíquicos. O rompimento dessa frágil fronteira está na base do comportamento de Arthur. Realidade, fantasia… Ele já não sente mais dor, como diz em uma cena do filme.
Já com a identificação construída, não enxergamos mais o coringa como o inimigo do Batman. A base de toda história de vilão e mocinho aqui é reconstruída sob uma nova perspectiva. Se os heróis são os que sempre escapam de todas as situações de perigo que, normalmente, na vida real não sobreviveriam, com o coringa não é diferente. Ele se torna um sobrevivente, que escapa de uma vida de inúmeras violações e violências – físicas e psicológicas – tornando-o um vilão com a sorte de um herói. Neste momento, assim como o ingrediente básico de muitas histórias da ficção, em que o herói retorna triunfante e faz justiça contra os “caras maus”, o Coringa aparece em um programa de televisão, ao vivo, e acaba com aquele que o ridicularizou e que, naquele momento, representava todos que um dia lhe causaram dor ( seu suposto pai, sua mãe, seus colegas de trabalho e a sociedade como um todo). Sentimos um misto de espanto e prazer: prazer por vermos um oprimido se vingar. Espanto por sabermos que estamos gostando disso.
A ideia de que passaremos a idolatrar vilões é algo que perturba os pensamentos daqueles que acreditam que o filme é uma apologia à violência. Embora seja quase natural a simpatia pelo personagem, não se enganem: estamos muito mais próximos de continuarmos segregando os excluídos do que nos tornarmos militantes dos desfavorecidos e marginalizados. A identificação só é possível porque acompanhamos o surgimento do herói/vilão, observando de perto as suas mazelas e compartilhando de seus sentimentos, pois projetamos na persona de Arthur o nosso coringa interior, que prendemos cotidianamente para mantermos nossa sanidade preservada
Continuaremos nossas vidas e o furor causado pelo filme logo diminuirá. Logo esqueceremos como é o caminho percorrido por alguém que rompe com as normas sociais e cospe de volta toda a fúria que lhe foi oferecida. Não são filmes como esta incrível obra cinematográfica que produzem violência, mas sim o esforço ininterrupto para manter às sombras aqueles que são diariamente violentados pela inequívoca estrutura de civilização que nós temos. Que venham mais coringas!
REFERENCIAS
FREUD, S. (1908). “Gradiva” de Jensen e outros trabalhos (1906-1908), Edição Standard Brasileira, Vol. 9. Rio de Janeiro: Imago, 1969
Tiago Pontes é psicólogo e atende em consultório particular na região da Vila Clementino, São Paulo, e em São Caetano do Sul. Gerencia a página suco de cerebelo que aborda temas como psicologia, psicanálise, filosofia, literatura, artes e comportamento.
Tiago Pontes
Psicólogo
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