Sobre a função analgésica do whatsapp

Recentemente tive o prazer de embarcar em um Uber cujo motorista era de uma simpatia ímpar. Tecia comentários sobre política, futebol, situação econômica de nosso país e tecnologia. Foi falando sobre este último assunto que o condutor fez uma observação que me chamou muito a atenção. Entre os comentários sobre como estamos cada vez menos inteligentes por conta dos inúmeros aplicativos, que substituem nosso raciocínio espacial (como o Waze e Google Maps) , e as oportunidades criadas por empresas (como o Uber e a 99), o condutor fala sobre como estamos cada vez mais distantes uns dos outros, graças aos aplicativos de mensagens instantâneas. “As pessoas não falam mais ao telefone, pois o WhatsApp lhes dá tempo de pensar”, disse ele.
Mesmo depois de desembarcar, o comentário daquele motorista sobre como nos comunicamos me fez pensar e escrever este texto. Durante o resto de meu trajeto, já no metrô, pensei sobre o que aquele esperto observador da vida cotidiana havia dito e só pude concordar. Aliás, naquele mesmo momento em que ele fazia suas observações precisas, eu estava tendo uma experiência que validava a sua “teoria”: as conversas por meio de aplicativos de mensagens instantâneas nos protegem; e isso tem feito com que percamos a habilidade retórica. Eu sabia, pois estava me protegendo naquele momento.
O consultório não escapa desta dinâmica de relações estabelecidas no século XXI. Por uma demanda que hoje é majoritária em qualquer relação de prestação de serviço, estabeleço com os que desejam iniciar o processo psicoterapêutico um primeiro contato por meio do WhatsApp. Perguntas sobre o processo, valores, horários e outras dúvidas são sanadas por meio do app. Procuro, por uma questão técnica, fazer com que este contato virtual tome o mínimo de tempo possível nesta relação que se inicia, entretanto isto não depende apenas de meu desejo.
Alguns aspirantes à terapia desistem mesmo antes de fazerem a primeira entrevista inicial. A teoria do perspicaz motorista do Uber aqui é ratificada: é muito mais fácil desmarcarmos um compromisso por meio de um aplicativo de mensagem do que por uma ligação telefônica. Através da mensagem, temos a “blindagem” do virtual que nos protege de qualquer reação do interlocutor. Em termos técnicos, encontramos uma maneira de nos esquivar do desprazer que a reação do outro ocasionaria em nós, mitigando qualquer cenário de frustração e permitindo que continuemos soberano na nossa posição de gozo.
Isto não ocorre apenas com os que buscam por terapia. Aqueles que já estão em processo psicoterapêutico também utilizam o WhatsApp para comunicar a decisão de encerrar o tratamento. Tenho como política de trabalho em situações como esta, seja com os que desejam começar o tratamento ou com os que já estão em terapia, sugerir uma sessão. A ideia deste contato é poder proporcionar ao paciente uma reflexão acerca de seus motivos para a desistência do processo psicoterapêutico. Para os que decidem encerrar o tratamento no meio do caminho, muitas vezes existem resistências diante do que se começa a descobrir. Para os que ainda não começaram, a iminência de começar a reconhecer suas angústia e questões mais complexas causa um temor insustentável que os obriga a agir. A desistência é a única saída. Em ambas situações, em que o WhatsApp se torna um analgésico para evitar o sofrimento de assumir a responsabilidade diante da desistência, fica evidente a função “retardadora de desprazer” que a tecnologia propicia em nossas relações.
Acompanhando o raciocínio do esperto motorista do Uber, a tecnologia não é de todo ruim. Traz muita coisa interessante para o mundo, mas precisamos ficar atentos para que não nos tornemos dependentes dela, e que não percamos a habilidade de conhecer um caminho sem o GPS ou terminar uma relação sem a ajuda de apps. Precisamos reaprender como é frustrar – e sermos frustrados.
Tiago Pontes é psicólogo e atende em consultório particular na região da Vila Clementino, São Paulo, e em São Caetano do Sul. Gerencia a página suco de cerebelo que aborda temas como psicologia, psicanálise, filosofia, literatura, artes e comportamento.
Tiago Pontes
Psicólogo
CRP 06/123352
Siga no Instagram: @tiagopontes_psicologo
Curta no Facebook: facebook.com/sucodecerebelo
Outros textos como este no site: psicologotiagopontes.com.br