Psicoterapia e o corpo na pandemia

Acabo de confirmar com todos os meus pacientes que os atendimentos serão realizados na modalidade on line. Tenho como política em meu trabalho realizar nesta modalidade apenas atendimentos com pessoas que moram fora do estado de São Paulo ou do país. Obviamente, há exceções. Pacientes que passam por problemas de saúde, viagens de trabalho ou outras eventualidades que impeçam a sessão convencional. Em tempos de corona, precisei “flexibilizar” minha política de atendimento.
Muitos colegas atendem por vídeo. É inevitável abrir-se para esta possibilidade, tendo em vista que a tecnologia facilita a nossa comunicação e possibilita cenários que antes eram impossíveis. Continuo restringindo este tipo de atendimento às exceções acima porque acredito que o corpo é parte fundamental de uma psicanálise.
Não existiria psicanálise se não fosse o corpo. Foi graças as histéricas da Viena do final do século 19 que Freud pode descobrir (ou inventar, como alguns preferem dizer) o método psicanalítico e que possibilitou dar significado aos inúmeros sintomas físicos de todas aquelas mulheres. Ao desafiarem o saber médico da época com seus corpos, estas pacientes sinalizavam que o corpo fala – mesmo que não sejamos capazes de entende-lo.
Contardo Calligaris em sua última coluna discutiu como algumas doenças são metáforas do mal do qual a sociedade deveria ser “curada” (coluna pode ser lida no site da folha, para assinantes). O psicanalista italiano lembra que as doenças tendem a representar a “doença cultural” pela qual nossa sociedade tenta se afastar. Cita o exemplo da Aids que durante anos ficou estigmatizada como “doença de gays”. Calligaris fala que o COVID-19 serviria como uma metáfora para nossa necessidade de isolamento. O crescimento do nacionalismo (o Brexit), através de líderes populistas e que ratificam o discurso em favor do isolacionismo cultural e econômico (Eua, Brasil, Hungria) e ataques crescentes aos estrangeiros e refugiados.
Em nossa época, assim como na Viena de Freud, o corpo continua “falando”. As redes sociais tornaram-se a grande janela indiscreta pela qual todos nós, mesmo que inconscientemente, desejamos ter nossos corpos espionados. Nossa inclinação ao exibicionismo nos condiciona a este fetiche primitivo (quando crianças, nada nos dava mais prazer que o olhar apaixonado de nossos pais) que nos alimenta e nos condiciona ao fluxo sem fim de vitrine 24 horas.
Diferentemente do que ocorre em uma sessão, ao deitar-se no divã o paciente estará diante de si mesmo, sem o olhar carinhoso dos pais ou o punitivo dos “haters” da vida virtual. Esta posição exige que tenhamos um bom acordo com nosso corpo, encontrando um equilíbrio para que nossos sintomas sejam visualizados por nós e pelo analista e, sendo assim, quem sabe, decodificados. O corpo também precisará ser “levado” ao consultório, sendo este movimento parte importante do processo de análise, uma vez que o deslocamento é um dos investimentos realizados pelo paciente (assim como a frequência, o pagamento e deitar no divã). Neste sentido, sair de casa significa que há algo que o paciente está permitindo que comece a sair de dentro de si.
Em tempos de pandemia, há algo que é interditado em cada um de nós. Por mais que algumas pessoas sejam originalmente solitárias, a atual conjuntura nos obriga a ficarmos cada um em sua redoma. A condição atual propicia que resquícios de nossas fantasias narcísicas ganhem eco numa recomendação médica para nos isolarmos. Não há saída: precisamos fazer isso. Mesmo assim, continuo torcendo para que este momento acabe o quanto antes. Continuarei acreditando no corpo como um código a ser decifrado e no poder de suas mensagens. Torço para que muito breve os que gostem da rua possam ir para rua, assim como os que gostam de casa, continuem em casa – metaforicamente ou não.
Tiago Pontes é psicólogo e atende em consultório particular na região da Vila Clementino, São Paulo, e em São Caetano do Sul. Gerencia a página suco de cerebelo que aborda temas como psicologia, psicanálise, filosofia, literatura, artes e comportamento.
Tiago Pontes
Psicólogo
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