Pessimistas do mundo, uni-vos!

Não são poucos os conselhos dados por inúmeros especialistas sobre como devemos nos comportar em tempos de pandemia. As recomendações vão do cuidado com a alimentação, realização de atividades físicas e atenção à saúde mental – cuidados estes que não se diferem dos que devemos ter em qualquer momento. Sobre os cuidados com a mente, assunto que me diz respeito, não posso deixar de me incomodar com os pedidos para que nos mantenhamos equilibrados e confiantes.
Equilíbrio e confiança são fundamentais para se atravessar momentos de crise. Nenhum paciente que inicia uma psicoterapia está buscando ajuda para ser desequilibrado e sem confiança, mas o que vemos em momentos como o que estamos vivendo é que devemos agir como se fossemos samambaias, exalando tranquilidade e beleza. Tais recomendações são marcas da forma como encaramos os problemas em nossa sociedade atual.
A ideia disseminada em nossos tempos é que devemos estar, sob qualquer situação, reagindo positivamente, não se abalando por “qualquer gripezinha”. Este fenômeno se acentuou após as duas grandes guerras mundiais, o que vejo como um movimento absolutamente natural: depois de tanta dor e sofrimento, obviamente gostaríamos de ter aquilo que nos era escasso: paz. Não à toa, o fenômeno “new age”, com suas práticas emprestadas de culturas antigas, quis nos afastar do corpo (violento) e nos aproximar do espírito (pacificado). Como tudo que dá lucro, o mercado apoderou-se desta nova ética, tornando o modelo “paz e amor” a nova moda entre os elevados.
A ciência não está apartada da cultura. Medicina, psiquiatria e psicologia também surfaram nesta onda. Cada vez mais o ideal de felicidade era discutido e vendido como o mais elevado nível de saúde para o ser humano. Os psicotrópicos vieram com força total, tornando o adoecido homem moderno em alguém capaz de suportar uma vida de opressão e dor (samambaia?). Nesta onda, dentro da psicologia, inúmeras teorias e técnicas psicoterápicas prometiam dar ao homem o equilíbrio que um dia (quando?) foi possível ter. Paralelamente a isso, tudo aquilo que não era parte deste ideal de felicidade deveria e precisava ser extirpado – e o inconsciente se deliciou, pois se alimentou, e se alimenta, como de costume, de tudo aquilo que é jogado para os “porões da alma”. Os sintomas que vemos hoje são manifestações desta nova ética. Os pessimistas ficaram démodé.
A ideia de que podemos – e devemos – sempre ser otimistas e felizes diante do futuro não só é nocivo como evolutivamente impossível. Jason Silva, filósofo e futurista, nos alerta sobre sermos descendentes dos mais medrosos “homens das cavernas”:
“somos os descendentes dos humanos que mais tiveram medo no passado e faziam planos conforme os movimentos do leão. Os humanos relaxados foram comidos”.
Neste trecho da entrevista (deixarei o link no fim do texto), Jason faz uma crítica ao medo, mas empresto sua fala para dar o devido valor ao mais genuíno sentimento humano.
O medo e a ansiedade são reações orgânicas. Juntos se transformam em um alerta de cuidado que nossa evolução nos deixou como herança e que nos faz agir diante de situações que envolvam grandes riscos para a nossa integridade. Os que respondem descontroladamente a este sinal podem ter ataques de pânico e outros sintomas típicos dos fóbicos. Isto deve, sim, ser encarado como um problema e a psicoterapia pode ser uma alternativa como tratamento. Para todos os que conseguem se organizar e viver sem grandes prejuízos, o medo e ansiedade não devem ser encarados como algo a ser curado.
Há como ser propositivo mesmo sendo um pessimista. Nietzsche era absolutamente descrente em relação ao homem moderno e nossa sociedade, mas, mesmo assim, rejeitou drasticamente a alternativa de Schopenhauer, que via na vida apenas um caminho em direção ao niilismo – discordância esta que o tornou um dos grandes críticos do autor de “ a vida como vontade e representação”. Nietzsche imaginou que o homem do futuro deveria reconhecer que vive, sim, numa sociedade adoecida, mas que isto não deveria ser uma justificativa para a inércia. O filósofo alemão não depreciava um olhar realista diante da vida, mas criticava os que se anestesiavam e buscavam negar a vida como ela realmente é – em suas dores e delícias.
Diante das inúmeras recomendações para passarmos bem por este período, há quem creia veementemente que deveríamos tratar esta crise sem precedentes apenas como uma “resfriadinho” e que podemos voltar às ruas. Muitos outros acreditam que este surto é o prelúdio do fim do mundo e que chegou o momento para acertamos nossas contas com o universo, distribuindo sorrisos e cantando “imagine” nas janelas. Diria que devemos convidar os realistas, conhecidos como pessimistas por aqueles que os excluíram deste mundo feliz ( e chato), para que, neste momento, nos ensine a olhar para o mundo e enxergá-lo como ele realmente é e nos atentarmos para, como diria Nietzsche, nos tonarmos aquilo que somos.
Link entrevista Jason Silva: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/03/11/tecnologia-nos-da-poder-de-deus-mas-ainda-temos-cerebros-paleoliticos.htm
Tiago Pontes é psicólogo e atende em consultório particular na região da Vila Clementino, São Paulo, e em São Caetano do Sul. Gerencia a página suco de cerebelo que aborda temas como psicologia, psicanálise, filosofia, literatura, artes e comportamento.
Tiago Pontes
Psicólogo
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