O que desejamos?

A ideia de que poderíamos estar vivendo uma vida melhor parece ser algo recorrente em nossos pensamentos. Com o avanço das mais modernas pesquisas – de nanotecnologia às neurociências -, aquilo que parecia ser apenas ficção vem se tornando cada vez mais possível: aumento da expectativa de vida, cura de doenças que, até pouco tempo atrás, eram consideradas incuráveis, entre outros. Neste bojo de avanços, temos a clonagem. Assunto que já não é mais tão novo, mas que causa intermináveis debates éticos e filosóficos.
O sonho de criarmos uma versão melhor de nós mesmos é o tema central da incrível série “Living with yourself” (algo como “Vivendo consigo mesmo”), disponível na Netflix. A obra tem como personagem central o típico americano moderno, Milles Elliot ( Paul Rudd) que sofre com sua perda gradativa de autoestima: um emprego frustrante, um casamento em crise devido aos problemas que ele e sua esposa, Kate Elliot ( Aisling Bea), vêm encontrando para ter um bebê e a falta de sentido em uma vida monótona – identifica-se?
Após receber indicação de um amigo, decide buscar ajuda em uma clínica de clonagem clandestina. A ideia da clínica é criar uma versão melhor de seus clientes. Um ponto engraçado no momento em que Miles chega ao espaço é que ele encontra com Tom Brady, um símbolo do que representa o homem “macho alfa” americano: mais bem-sucedido jogador de futebol americano, rico, bonito e casado com a brasileira Gisele Bündchen, uma das mais belas mulheres do mundo. Uma vida admirável, não?
O desenrolar da série se dá pelo fato de o procedimento ter funcionado apenas parcialmente bem. Embora a clonagem tenha dado certo, a versão piorada (a real), que deveria deixar de existir, continuou e, sendo assim, original e cópia passam a dividir a mesma vida. Os desdobramentos são hilários a partir disso. Evitarei estragar a surpresa dos que ainda não viram a série e não contarei mais detalhes sobre os episódios, me atendo apenas a um ponto importante e que nos faz refletir sobre nossa angústia em não termos aquilo que desejamos.
A esposa de Miles fica encantada com sua “versão melhorada”. Depara-se com um homem atencioso, que presta atenção, que se lembra de detalhes importantes da vida dos dois (o clone recebeu todas as memórias da vida de Miles, com a vantagem de tê-las em um cérebro melhorado geneticamente) e que não carrega a prostração e desânimo de seu marido. O que poderia dar errado, então? Bom, este marido perfeito era mais interessante apenas na cabeça de Kate. O excesso de perfeição rapidamente a esgotou. Kate, então, não queria aquilo?
No que diz respeito aos nossos desejos, a psicanálise sugere que as motivações internas nem sempre estão em congruência com as externas. Aquilo que temos como ideal, seja no campo amoroso, profissional, relações interpessoais, etc., em muitas situações são feitas, apenas, para existirem no campo das ideias. Criamos, inconscientemente, algumas estratégias mentais que nos afastam ou aproximam daquilo que efetivamente queremos. Essas estratégias servem, basicamente, para que tenhamos o mínimo de equilíbrio em nossos pensamentos.
Muitos dos nossos ideais são admiráveis e cobiçados exatamente por serem…ideais. De alguma forma, os mantemos distantes de nossa vida real – criamos obstáculos ou buscamos coisas exatamente opostas a eles – exatamente para que sua perfeição seja mantida. Algumas escolhas amorosas tidas como ruins, empregos não tão agradáveis e um estilo de vida “menor”, podem ser, na verdade, aquilo que realmente queríamos ter, pois sabemos (um saber inconsciente) que o nosso ideal fica muito melhor na vitrine de nossos pensamentos. Kate não buscou este “homem perfeito”. Ele surgiu graças à interferência genética e, muito provavelmente, não teria buscado este homem fora de seu casamento – e se buscasse, pelo que apresenta na série, também teria a decepção.
Assim como Kate, em muitas situações descobrimos que aquilo que imaginávamos ser perfeito é, na verdade, algo “excessivamente bom” para ser vivido. Estaríamos dispostos aos sacrifícios necessários para conseguirmos esses ideais? Estes não se tornam realidade por conta de um infortúnio ou estamos “trabalhando” para mantê-los no “mundo das ideias”. Respostas que quase sempre só chegam ao vivermos estes desejos – ou quando enfrentamos os obstáculos necessários para tê-los. Um ditado muito comum e repetido por várias pessoas é “cuidado com o que deseja, isso pode ser tornar realidade”. Adaptaria esta sentença em termos psicanalíticos para “cuidado para que sua realidade não se torne apenas o seu desejo”.
Tiago Pontes é psicólogo e atende em consultório particular na região da Vila Clementino, São Paulo, e em São Caetano do Sul. Gerencia a página suco de cerebelo que aborda temas como psicologia, psicanálise, filosofia, literatura, artes e comportamento.
Tiago Pontes
Psicólogo
CRP 06/123352
Siga no instagram: @tiagopontes_psicologo
Curta : Suco de cerebelo
Outros textos como este no site: psicologotiagopontes.com.br