Somos todos capitães?

No último dia 07/09, a seleção brasileira começou um novo ciclo com uma vitória tranquila sobre os Estados Unidos. Dias antes, o técnico brasileiro mostrou aos jornalistas uma mudança que parece ter como objetivo delimitar uma nova era: não haverá mais rodízio de capitães. O que antes parecia ser uma estratégia inovadora, cujo objetivo era dividir a liderança de maneira horizontalizada, agora, aos olhos de todos, parece ter sido um equívoco. O que até bem pouco tempo era o grande acerto de Tite, tornou-se a grande causa dos problemas da nossa seleção
Ao longo destes cem anos de seleção brasileira, e em outras seleções e clubes, este posto ficou marcado por ter sido ocupado por jogadores com características bem específicas: liderança, forte posicionamento frente aos problemas dentro do campo (arbitragem, discussões com outros jogadores, etc.) e, o mais importante, a voz do treinador dentro do time. A função de capitão, no esporte, é nitidamente inspirada no posto militar, cuja responsabilidade principal, em situações de combate, é comandar os soldados rumo à vitória, tornando-se a referência principal no front de batalha. A palavra capitão vem do latim caput, que significa cabeça. Em outras palavras, assim como nas batalhas que envolviam grandes exércitos, o capitão é quem guia os companheiros, através de sua liderança, para o objetivo maior, que, no caso do futebol, é a vitória. Outros esportes coletivos seguem esta lógica inspirada nas grandes batalhas, tendo, inclusive, algumas funções os mesmos nomes que alguns postos ocupados por soldados, como por exemplo o artilheiro. Embora esta aproximação seja curiosa e interessante, não é o objetivo deste texto, pelo menos no momento, ater-se a este dado, por isso volto minha reflexão à política de rodízio de capitães do técnico Tite.
O que se observou na seleção brasileira na última copa do mundo é claramente observado em outros setores de nossa sociedade. Nas empresas é cada vez mais crescente a “gestão horizontalizada”, cujo objetivo maior é o de dividir a tarefa de chefiar. Nas famílias, os pais parecem estar cada vez menos acostumados com a autoridade que a função parental exige. Em suma, a contemporaneidade não se contenta mais com modelos tradicionais de liderança, o que, ao menos no primeiro olhar, parece ser algo muito interessante, pois há pouquíssimo tempo nossa sociedade era regida por modelos totalitários em que não cabia-se qualquer tipo de diálogo. A grande questão é que, historicamente, quando nos revoltamos com determinada forma de viver, automaticamente buscamos o caminho oposto. Foi assim com a revolução sexual, nos anos 60/70, que se opôs integralmente ao modelo vigente de relações que era a norma naquele momento. Desta forma, nossa sociedade vai se moldando de acordo com a vontade de uma época e, as “regras do jogo” vão se adaptando ao “jogador”.
O que me parece ocorrer nesta metodologia de divisão do papel do líder, presente na seleção do Tite e nos outros setores que mencionei, é que esta prática acomoda o desejo ressentido da criança que mora em cada um de nós.
A psicanalise nos diz que são nos primeiros anos de vida que internalizamos a ética do desejo, ou seja: através das nossas primeiras relações com nossos cuidadores, aprendemos como lidar com a impossibilidade dos nossos anseios, o que devemos fazer para alcança-los e como lidamos com a derrota. No pacote deste último, aprendemos (ou pelo menos deveríamos aprender) que nem sempre somos os primeiros. Carregamos estas impressões fixadas na infância ao longo de nossa vida e a ética do desejo é regida por elas. Nota-se com frequência que temos cada vez menos tolerância para lidar com posições inferiores às nossas idealizações. Para sanar tal necessidade, inventamos modelos que transformam todos em líderes, todos em grandes vencedores, todos em capitães. Não é incomum observarmos uma mãe preparar um bolo “alternativo” para o filho que não está fazendo aniversário. Além dos “parabéns” para o aniversariante, todo cenário paralelo é montado para que o irmão ressentido não sofra com o dia especial do aniversariante, incluindo aí os convidados que também precisam levar presentes alternativos, pois a criança, em seu entendimento, não ocupa posição secundária. Essa é a sua ética.
Nas empresas, cada vez mais vemos jovens que não admitem ocupar posições subalternas, pois se julgam muito capazes para serem apenas assistentes. Na seleção brasileira, foi o que Tite, respondendo à demanda de uma época, tentou fazer ao não frustrar ninguém com a posição de comandado, ou em outras palavras, sob a perspectiva do ressentido, com a posição de “não capitão”.
A pergunta que fica com esta nova configuração é: como Neymar se comportará com esta nova responsabilidade? A nossa maior estrela é fruto desta geração de jovens que não suportam a posição de coadjuvante. Saiu do Barcelona, pois queria ser o melhor mundo. Lá havia o Messi (lembra do bolo?). Voltando um pouco mais no tempo, nos lembraremos como ele se comportou quando o seu técnico na época, Dorival Junior, o impediu de bater um pênalti. Esbravejou e xingou seu comandante sem pensar nas consequências. Tite está, aparentemente, utilizando a responsabilidade da braçadeira de capitão para fazer com que Neymar aja de maneira mais madura dentro de campo. Agora nos resta saber se a braçadeira de capitão terá para o craque a função de um bolo alternativo ou se ele saberá ser um “não capitão”.
Tiago Pontes
Psicólogo
CRP 06/123352
Tiago Pontes é psicólogo clínico e social. Atende em consultório particular na região da Vila Clementino, São Paulo, e em São Caetano do Sul. Gerencia a página suco de cerebelo que aborda temas como psicologia, psicanálise, filosofia, literatura, artes e comportamento.
@tiagopontes_psicologo