O que é importante em momentos como esse é termos acesso aos nossos sentimentos que são tidos como “superados”

O consultório de um psicoterapeuta é palco de inúmeras histórias pessoais. Relatos da infância, medos, paixões e angústias são compartilhados por aqueles que desejam deixar de sofrer. Por mais que as histórias pessoais sejam preponderantes neste contexto, o que acontece num determinado momento da história também é “tema” de uma sessão. A pandemia do coronavírus já se tornou um divisor de águas em nossa história recente e, consequentemente, vem fazendo com que as pessoas discutam e se (re)organizem nesta nova realidade.

Alguns pacientes não puderam continuar com o tratamento, outros tiveram de encontrar novos horários para seguirem com a análise. É inevitável que o cenário atual impacte em como um paciente lida com seu tratamento psicoterapêutico e questões surgem. Alguns fazem terapia sem o conhecimento de seus parceiros amorosos e como realizarão uma sessão em casa? Dirá o paciente ao seu par que iniciará este tratamento agora ou revelará que já vem fazendo análise há tempos? No caso de o parceiro saber sobre a terapia, como faz o paciente que tem exatamente na relação amorosa o cerne de suas questões? Falará sobre o parceiro correndo o risco de ser ouvido? Mães que encontram nos cinquenta minutos de sessão o único espaço viável para se sentirem livres de seus filhos e da obrigação de serem responsáveis por alguém… como lidam com isso?

Embora sejam todas questões importantíssimas para pensarmos neste momento, um paciente levantou uma questão que me fez pensar sobre liberdade. Mesmo com um histórico de reclusão, o jovem mostrou-se incomodado com o confinamento. Ao explicar o que, aparentemente, era algo estranho para alguém com desprezo pela convivência social, o jovem paciente expurga a sua revolta com o fato de ter o seu direito de sair de casa violado. Está bem por não precisar ir à escola ou realizar as atividades extra curriculares, mas gostava de seu direito de querer fazer isso por si e não sendo obrigado a fazer porque não tem escolha.

Numa situação como a que vivemos, o direito à individualidade é substituído por um comprometimento com o bem estar coletivo. Não escolhemos cuidar uns dos outros, mas para que sobrevivamos ao surto de contaminação, numa complexa relação que se pressupõe de mão dupla, cuido dos outros para que cuidem de mim. Ao não sairmos de casa, estamos evitando que nos contaminemos, mas, também, estamos impedindo que um possível vírus em nós seja transmitido aos nossos concidadãos. Por “força maior”, entramos num acordo que não pedimos para estar.

Este acordo, ao qual somos obrigados a participar, nos aproxima de uma realidade que vivemos no contexto familiar. Aprendemos desde muito cedo, por volta do primeiro ano de idade, que fazemos parte de uma ordem que ultrapassa os nossos desejos subjetivos. Pouco a pouco, vamos trocando a vontade abrupta e desmedida por termos prazer imediato (narcisismo primário), por um entendimento das “regras do jogo” e uma gradual relação de troca (narcisismo secundário). Neste segundo momento, entendemos que para sermos amados, precisamos aprender a falar “papai”, “mamãe”, ou comermos toda a comida para termos acesso ao sorvete. Receber carinho e comer algo gostoso agora é mais trabalhoso.

O risco iminente de sermos contaminados nos obriga a olharmos para os outros. O descontentamento por estarmos fazendo algo contra a nossa vontade é relegado e substituído pelas boas ações que tanto vemos nos noticiários. Longe de mim diminuir tais ações, pois não acredito que o simples fato de explicarmos a origem de nossas ações, boas ou ruins, tirem o peso e a importância de cada uma delas – uma boa ação precisa ser enaltecida, assim como as ações ruins precisam ser punidas.  O que é importante em momentos como esse é termos acesso aos nossos sentimentos que são tidos como “superados”. Talvez seja importante nos ouvirmos falando sobre o quanto sentimos por não termos acesso ao que queremos – não só através do psicólogo. O paciente do exemplo acima talvez seja um bom modelo de como nos incomodamos em fazer algo por obrigação, mesmo que esse algo vá ao encontro dos nossos desejos. No fim, estar em casa é ruim até para quem ama ficar em casa, pois não temos opção – me incluo nisso.

Não sabemos quanto tempo ainda durará o atual momento. Talvez precisaremos ficar muito tempo em confinamento e lidando com nossas frustrações. Mesmo sendo difícil, é fundamental que continuemos olhando para o mundo coletivamente, prezando pelo comprometimento de todos, enquanto sociedade, e nos mantendo saudáveis. Não obstante, que encontremos espaços para termos acesso aos nossos sentimentos individuais. Acessa-los nos permitirá julgar melhor o que estamos fazendo sem grandes prejuízos subjetivos e, também, o que está “pegando carona” patologicamente nas nossas boas ações. Em meu prédio há dois moradores que vêm disputando quem canta mais alto às 20h. O que parecia ser uma coincidência, vem se tornando uma disputa para ver quem faz melhor a “boa ação” de alegrar o condomínio. Um dos dois poderia abrir mão do horário ou simplesmente parar de tocar/cantar. Talvez no caso destes moradores, a ira pela reclusão encontrou uma forma socialmente aceita de “respirar” o ar da convivência: em uma boa ação. Só me resta torcer que descubram isso e percebam que, às vezes, ficar puto faz bem.

 

Tiago Pontes é psicólogo e atende em consultório particular na região da Vila Clementino, São Paulo, e em São Caetano do Sul. Gerencia a página suco de cerebelo que aborda temas como psicologia, psicanálise, filosofia, literatura, artes e comportamento.

 

Tiago Pontes

 

Psicólogo
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