As masmorras amorosas do século XXI

Costumo discutir com muita frequência as mudanças ocorridas nos últimos anos em nossa sociedade. Saliento sobre a importância da internet nessas mudanças, haja vista que a informação é compartilhada com rapidez jamais vista antes e, consequentemente, hábitos novos são “viralizados” com maior facilidade. O que talvez seja importante trazer para a discussão é o que significa efetivamente mudança para a psicanálise. Mudamos ou gostamos de parecer mudados?
O amor, sem dúvida alguma, foi um dos que sofreu inúmeras modificações em sua forma e conteúdo (ou estética e ética, se preferirem). Até pouco tempo atrás, a ideia de que a traição deveria ser punida com a morte era ratificada por toda a sociedade. Uma “ética” validada pelos nossos costumes e, obviamente, subsidiada pelo pensamento religioso que outorgava ao traído o direito de “limpar sua honra”. Ideia esta que hoje é denunciada e combatida por todos; os que fazem uso desta alternativa são julgados (acertadamente) pelos poderes da lei.
Assim como disse em meu último texto, em que discuti os novos modelos de educação de filhos, uma mudança não ocorre sem a necessidade de contenção do pensamento que precisa ser destituído. Porém, sabemos que tal ideia não deixa de existir magicamente e sua influência ainda é sentida, mesmo que de maneira velada (1). Neste ponto, permito-me recorrer ao mesmo método utilizado para analisar a subjetividade de um indivíduo a fim entendermos como funciona a engrenagem psíquica de uma sociedade.
A base de nossa estrutura psíquica é pautada pelo processo de repressão de desejos socialmente inaceitáveis e a readequação destes em comportamentos (tidos como) moralmente corretos. Uma criança percebe que não cabe, naquela família em que almeja ser membro, um comportamento agressivo e sádico ( neste caso, o exemplo funciona em uma família razoavelmente saudável e que não permite um comportamento inadequado da criança) e, pouco a pouco, após inúmeras “desilusões”, descobre que precisa se adequar às “regras do jogo”. Em suma, nossa primordial necessidade de sermos amados é a força motriz de nossa entrada no jogo social. Uma criança pode começar a ser agressiva, por exemplo, com os bonecos ao invés de ser com os seus familiares.
Para fazermos parte da “grande família social”, também passamos por este processo. Nossos desejos mais inconcebíveis precisam ser reprimidos para que sejamos aceitos no grande grupo da humanidade e nos pequenos grupos, tais como o trabalho, grupo religioso, grupo de homens, mulheres, homens casados, mulheres casadas, etc. Um homem no século XXI será punido se se comportar com sua esposa como um homem de alguns séculos atrás. A sociedade recrimina qualquer tipo de tentativa de posse e, consequentemente, há hoje em dia recursos legais para que um agressor seja punido. Mas será que são apenas os que vão às vias de fato que podem ser considerados hoje em dia como inábeis para o amor?
Por mais que entendamos que as relações amorosas precisam ser vivenciadas de maneira diferente em nossos tempos, o eco daquilo que já foi considerado moralmente aceitável nos influencia. Não é incomum encontrarmos pessoas que dizem que as ações de cerceamento das vontades dos parceiros são demonstrações de afeto e carinho. “Quem ama, cuida” e outros chavões populares servem como justificativa para tentativas de dominação, como, por exemplo, não permitir que o parceiro saia sozinho – porque não confia nos outros, claro. Todos estes argumentos são sinais de um tipo de amor patológico e por mais que haja cada vez menos espaço para isso, estes desejos vêm encontrando formas moralmente aceitáveis de serem, disfarçadamente, vivenciados.
Vi há pouco na TV, em um jornal, uma matéria sobre ciúmes. Um casal encontrou uma saída que vem se tornando popular para solucionar o problema da insegurança: permitir que o parceiro tenha a senha do celular. O que, aparentemente, soa como uma iniciativa de honestidade e liberdade, na verdade esconde um desejo de possuir o outro e cercear os desejos do amante. Uma pergunta: não achamos adequado que um homem impeça a sua esposa de conversar a sós com quem quer que ela queira, certo? Por que deveríamos achar adequado uma deliberada invasão de privacidade? O olhar de psicanalista não me permite olhar de outra maneira: situações como esta demonstram que encontramos uma maneira socialmente aceitável de cercear os desejos daqueles que acreditamos amar. O objetivo de ter um “grande olho” supervisionando os passos on line do parceiro é o de criar um ambiente em que ações “infiéis” sejam desencorajadas. Mais ou menos como o que os pais fazem com filhos que têm Smartphones (o que, neste caso, é correto). O que escapa ao enciumado é que a única coisa que este comportamento impedirá é que o seu parceiro concretize a traição. O desejo do outro, isso ninguém ainda foi capaz de controlar.
Algo importante sobre ciúmes: normalmente o ciumento é aquele que tem mais fantasias sobre traição em sua cabeça. Fantasias estas que por um intransponível “código moral” (ou um superego rígido), obriga o ciumento a redirecionar ao parceiro aquilo que para ele é pesado demais carregar, a alcunha de infiel. Sonhos de pacientes ciumentos são recheados de cenas de adultério e não é incomum, durante as sessões, perceberem que tais fantasias vêm de desejos que eles mesmos evitam reconhecer. Penso que os que tentam suprimir a subjetividade dos parceiros, seja no controle do corpo físico ou no “avatar da vida on line”, têm, quase sempre, dificuldades em conter os seus próprios desejos. “Proibindo o outro, recebo um controle externo que será mais eficiente do que minhas próprias habilidades de conter meus desejos”, pensa o ciumento.
É importante salientar que ciúme é um sentimento tão humano quanto nosso desejo de fazer mal a alguém. Talvez seja o momento de entendermos que este sentimento que foi – e ainda é – parte fundamental da mítica do amor seja um problema do enciumado e não do objeto deste ciume, assim como ocorre com outros sentimentos. O ódio que sentimos por outras pessoas precisa ser trabalhado por nós mesmos. Não devemos (ou pelo menos não deveríamos) matar os que nos incomodam. Podemos entender o motivo desse ódio ou, caso este sentimento seja um fardo, nos afastarmos. Assim também deveria acontecer com o ciúme. Em tempos de mudanças de paradigmas, é fundamental que não transportemos hábitos obsoletos para o futuro. Se não pode conter seu ciúme sem afetar a vida de outra pessoa, afaste-se antes que possa ferir alguém – e este alguém pode ser você mesmo.
(1)https://www.psicologotiagopontes.com.br/pais-que-nao-querem-ser-pais/
Tiago Pontes é psicólogo e atende em consultório particular na região da Vila Clementino, São Paulo, e em São Caetano do Sul. Gerencia a página suco de cerebelo que aborda temas como psicologia, psicanálise, filosofia, literatura, artes e comportamento.
Tiago Pontes
Psicólogo
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